"Em 1975/1976 a escola era um festival"
Ainda se lembra do seu primeiro dia de aulas, na Primária?
Não me lembro do meu primeiro dia de aulas, mas lembro-me da primeira classe, na Escola Número 13 , em Campolide, e era um ambiente de terror. Estamos a falar de 1968 , numa escola onde eu com seis anos tinha colegas de 11 e 12 anos que levavam facas para a escola e roubavam o pequeno-almoço aos mais novos. E um diretor de escola que batia aos alunos. Havia reguadas violentas, punição física e os os retratos do Américo Tomás e do Marcelo Caetano nas paredes das salas. No início também devia haver o do Salazar, mas já não me lembro.
Nem lhe vou perguntar se guarda boas recordações desses tempos de primária...
Tenho boas recordações da professora Alzira, que me acompanhou nesses anos e era uma boa professora. Mas, de facto, o diretor da escola era execrável. Era um tipo violento e o ambiente era de terror puro. E havia este pátio difícil onde de repente estávamos misturados com miúdos muito diferentes. Salvei-me por uma coisa que não imaginava: jogava muito bem futebol. Na segunda classe percebi que tinha este talento. Então, fui adotado e protegido pelos mais velhos, que me punham a jogar na equipa deles. Tinha jeito para o futebol, uma característica que mantive na adolescência.
A carreira de futebolista acabou na adolescência?
Acabou-se um bocadinho mais tarde, mas devo dizer que alguns dos melhores momentos passei-os a jogar futebol com os amigos.
Os tais miúdos de 11 anos com facas?
Não, esses foram só no início. Havia esse ambiente, mas a gente sobrevive. Lembro-me de ter de decorar os caminhos de ferro de Angola e Moçambique para não levar reguadas. E de rezar a Maria no mês de maio, com o professor Ferreira, que era um beato, mas não se inibia também de dar as suas reguadas. Mas não era terror como o diretor da escola. Era o terror do tédio. Morríamos de tédio. Todos os dias, no mês de maio, as aulas acabavam com orações. Nós de joelhos e um cheiro a velas no ar. Depois fui parar à Escola Preparatória Manuel da Maia, em Campo de Ourique. Um salto muito grande: bons professores, escola boa, e coisas extraordinárias como educação física, que era um luxo.
Lembra-se de alguns bons professores?
De alguns. Para dizer a verdade, quando penso nos tempos de escola lembro-me sempre mais dos colegas do que dos professores. Quando entro no Liceu Pedro Nunes, em pleno pós-25 de Abril, em outubro de 1974, apanho o liceu em plena convulsão política. Ainda por cima era praticamente a sede do MRPP, que ficava 100 metros abaixo ali na [Avenida] Álvares Cabral. Nessa altura, o MRPP dominava o Pedro Nunes. Depois passou a haver a guerra entre o MRPP e a UEC - União de Estudantes Comunistas. Nessa altura, 1975/76, a escola era um festival . Não havia aulas, havia comícios a toda a hora... adeus programas. Toda a gente tinha uma filiação política. Nessa altura decidi, com um grupo de amigos, formar um grupo anarquista. Fazíamos poesia, pintávamos paredes. Tudo mais por irreverência do que por convicção.
E teve algum ano normal no liceu?
Foi um tempo tudo menos normal. Mas de aprendizagem imensa. Foi um curso rápido sobre tudo. E sempre a jogar futebol. Depois havia a música e tudo isso. Comecei a desenvolver aí o meu olhar cómico sobre o mundo. Nesse grupo anarca que tinha fizemos coisas engraçadas. Como fundar movimentos que não existiam. Só para baralhar.